Todos nos temos uma cota de mortos para nos responsabilizarmos. Se hoje estamos vivos, isso significa que tivemos que matar todos os nossos opositores para chegar onde estamos. Civilizações se opuseram a outras e no final, os vencedores dominaram os oprimidos. Em nome da sociedade moderna, muitas vidas foram ceifadas, para dar lugar as novas ideologias. Nesse jogo, não cabe discussões, quando paravam para discutir, os que postergavam o renovo, se davam por vencidos e a guerra se definia.
O país que eu vivo, descoberto pela civilização por Pedro Álvares Cabral, massacrou os primitivos que aqui existiam, acabando com todas as suas origens e cultura. O fator de dominação sempre é a religião e língua e essas foram as primeiras inserções que os jesuítas impuseram aos índios, os que resistiam as mudanças, pagavam com vida, os que se davam por vencidos, pagaram com a morte social. Antes mesmo de nascermos, nossas mãos são sujas com o sangue dos oprimidos.
O número de mortos que muitos acreditam que devem chorar, na realidade é muito maior. Temos que chorar pelos escravos, que morreram nesse país em nome da ganância e maximização de renda dos meus ancestrais que vieram da Europa para sugar o que havia de melhor nessa terra. Temos que chorar pelos crimes políticos da época da ditadura, cometidos por aqueles que queriam permanecer no poder a qualquer custo. Temos que chorar pelas mulheres que não se conformaram com suas vidas ritmadas e se rebelaram em nome da liberdade feminina e morreram nas mãos do machismo. Temos que chorar pelos milhares de gays que se opuseram mundo afora em nome da liberdade sexual e suas vidas foram ceifadas em nome de um fundamentalismo barato e medonho. Nossos mortos são multiplicados e não faço a mínima ideia de qual seja o coeficiente para chegar num número aproximado.
Mais de 2000 mil anos se passaram desde que um homem que tinha uma ideologia que fugia da dos que estavam no poder foi crucificado. No decorrer da história tivemos outros mortos, entre eles Joana D'arc, Martinho Lutero e tantos outros que se opuseram a norma vigente. O poder não aceita contestações e a forma de pronunciamento compactuado, chamamos de democracia. Continuamos a matar e assim será até o fim da nossa civilização, até todos nós nos matarmos, extinguindo por completo a vida humana e os fatores primordiais para a manutenção de nossa existência.
Certa vez um amigo me disse que "para continuar, tenho que matar o meu pai", não esbocei reação alguma e continuei a ouvi-lo: "meu terapeuta disse que se eu não me livrar do monstro do meu pai, eu não conseguirei continuar vivendo". São muitos os que temos que matar socialmente para continuarmos a viver em harmonia. Eu tenho que matar alguns, mas tudo tem que ser no momento exato, muitas das vezes precisamos daquela pessoa viva, para nos dar forçar a continuar e nos alimentar para mata-las. Para matarmos alguém de nossas vidas, precisamos de forças, muita força e depois que as matamos, assim como a Fênix renasce das cinzas, nos também renascemos e alçamos voos ainda mais altos que os dados anteriormente.
No filme "Como Esquecer", Júlia (Ana Paula Arósia) teve que matar sua ex-namorada, a Antônia (personagem oculta), antes de tal morte, ela não obteve êxito em suas tentativas de continuar a viver. No filme, Júlia andava no meio da multidão, derepente parou, olhou para trás, olhou novamente, continuou a andar e sorriu. Ela teve que olhar duas vezes para reconhecer a Antônia e apartir daquele momento ela continuou a viver, Antônia estava morta para ela e o não reconhecimento da mesma de imediato, significou o cerimonial de enterro que devemos cumprir socialmente. Quando não enterramos alguém, nem que tal cerimonia seja um ato simbólico, o fantasma daquele morto continuará a nos assombrar.
Muita das vezes, também temos que matar um pouco de nos para continuarmos a viver. A águia, a ave que voa mais alto, quando se aproxima dos 40 anos, tem que decidir entre matar um pouco de si mesma ou morrer definitivamente. As que decidem por matar um pouco de si, se isolam. No decorrer desses 40 anos, o seu bico fica velho e encurvado, suas garras não são mais as mesmas e o excesso de penas é um peso que a impossibilidade de ter a agilidade de antes. No seu isolamento, a ave bate o seu bico contra a rocha, até quebra-lo por inteiro, quando um bico novo cresce, é a vez de arrancar as suas garras e quando novas garras crescem, é a vez de arrancar suas penas. Renovada, depois de aproximadamente 150 dias de isolamento, com bico novo, garras novas e penas mais leves, começa o segundo ciclo de vida da ave, que vive aproximadamente mais 30 anos.
Assim como a águia, também temos que por diversas vezes eliminar o que não precisamos e o que nos impede de ter uma vida melhor e mais leve, temos que nos matar um pouco para viver melhor. A vida e a morte estão intrinsecamente ligadas e para ter uma vida longa, temos que ter muitas mortes em vida. Temos que matar tudo o que nos torna mais pesado, que nos regride e nos impede de nos tornarmos seres humanos melhores. Quando isso não é feito, quando não morremos em vida para nos tornarmos melhores, até podemos continuar vivendo de forma biológica, mas a vida verdadeira, aquela que nos dá prazer e nos motiva ir além, fica para trás, perdida em meio aos sonhos de uma vida melhor.
2 comentários:
como historiador, chorar mortos é um tanto anti-profissional
Foxx,
Vc iria chorar por muitos. O meu objetivo foi chamar a atenção daquele que pensam: estou aqui e não tenho nada a ver com isso.
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